Era uma vez um tal de Tim Maia. Sujeito bonachão do tipo bipolar, morde e assopra, te amo e te odeio, ele suingou e romanceou a música brasileira entre os anos 60 e 90 com seus mais de 100 quilos e uma voz de trovão. Eis que um dia lá no céu, onde dom Maia passou a causar desde que partiu daqui, em 1998, vê seu sobrinho, um tal de Ed Motta, gordo igual, talento diferente e carisma zero, adentrar o recinto para ter uma resenha com o dono do pedaço. Deus tá ali, dá uma coçadinha em seus cachos dourados, chama o garoto para sentar do seu lado e inicia a prosa. “Fala aí, barão, qual é?” A parada é a seguinte, prosseguiu Ed, tô indo para uma turnê na Europa, mas, véi, não queria ver na plateia essa comunidade de brasuca mais humilde, tá ligado?, fã de ritmos populares. Tem jeito de o senhor interceder e derrubar uma meia centena desses aí de parada cardíaca antes do meu show?
Na quinta-feira 9, Ed Motta deve ter acordado e viu que esse sonho – e o seu desejo mais íntimo – não seriam possíveis. Como um gênio incrompreendido que acredita ser, trocou de porta-voz, Deus pelo Facebook, e mandou o recado a esses brasileiros, essa outra racinha que nada tem a ver com a estirpe dele: “Não gaste seu dinheiro e nem a paciência alheia atrapalhando um trabalho que é realizado com seriedade cirúrgica. Esse não é um show para matar a saudade do Brasil. É um show internacional”, escreveu. “Verdade seja dita, que meu público brasileiro de verdade na Europa é um pessoal mais culto, informado, essas pessoas nunca gritaram nada. O negócio é que vai uma turma mais simplória que nunca me acompanhou no Brasil. Público de sertanejo, axé, pagode, que vem beber cerveja barata com camiseta apertada tipo jogador de futebol, com aquele relógio branco, e começa a gritar nome de time.”
Ed Motta é aquele cantor que cria músicas para serem tocadas em cafés. Popular (queira ele ou não) graças ao hit “Manuel foi pro céu”. Esse mané (aqui, estou me apropriando do linguajar que ele gosta de usar), porém, não passa quando o Mar Vermelho abrir. Se pintar no céu, seu tio, que vivo não suportava a chatice do parente, o derruba de lá de cima numa barrigada. Ed Motta é o típico camisa 10 que acha que é craque, mas é apenas gente. Fosse tão espetacular quanto pensa, por que raios ainda não fez um hino como Dylan ou Stones e, ao contrário, fica aí no palco soletrando du-birá-birú, du-birá-birú? Sem menção honrosa da geral há tempos, Ed é desses que soltam o verbo pra ter Ibope (ontem, o assunto “Ed Motta” foi parar nos trending topics do Twitter ao espezinhar seus conterrâneos na rede social).
Não é a primeira vez que ele dá dessas. Como você vai ler no fim do texto, em 2011, esse modelo de passarela da Elite Models teve o dom de dizer que o povo brasileiro é feio. Eu até entendo o peso que ele deve carregar – não falo da circunferência da sua cintura. Seu tio fez (e ainda faz mesmo morto, sem escarcéu portanto) sucesso com a tal cultura racional, tema de um lendário disco. Ed, por sua vez, brada ser um representante da cultura superior, um diferenciado que se refere a gente como eu, que se diverte dando play num Raça Negra na jukebox, como mané e mortal. Diz não curtir o Carnaval, mas ama confete. Será que alguém poderia mandar um eunuco para abaná-lo?
Refresque a memória com os barracos do provocador Ed Motta:
#1 2008
No programa “Altas Horas”, da Globo, Ed Motta disse, na presença do crítico de música Álvaro Pereira Júnior: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina e quem nem isso consegue fazer vira crítico. Eu tenho completo desdenho cultural sobre o que essas pessoas (críticos) escrevem, falam. É como se fossem uma mosca, que eu mato em três minutos”.
#2 2010
O cantor detonou a axé music em uma entrevista à uma revista de celebridade. Gente como Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Daniela Mercury, Chiclete com Banana e Asa de Águia foi estapeado sem dó. “Na minha coleção de vinil tem todos os gêneros musicais. Axé? Isso não é gênero, é problema (risos). Tenho várias coisas da Bahia, mas não axé. Este ano fui ao Sambodrómo porque Edna (esposa dele) queria muito, mas também detesto samba-enredo. Só escuto música feita onde a energia local é estabilizada. Não ouço música da fome”
#3 2011
Dessa vez, malhou a beleza alheia e a da Paula Toller, vocalista do Kid Abelha, em especial. “O sul do Brasil, como é bom, tem dignidade isso aqui. Frutas vermelhas, clima frio, gente bonita. (...) povo feio o brasileiro. Em avião, dá vontade chorar. Mas chega no Sul ou São Paulo e tem gente bonita compondo o ambiente”, escreveu. “Mulher feia tem que ser mega competente. Se não, é Paula Toller nas cabeças. Linda, burra e sem talento”
#4 2012
Adepto assumido dos “bolachões”, Ed Motta detonou o ‘boom’ dos lançamentos em vinil no Brasil. “No Brasil, existe um boom (des)engraçado dessa história ‘meu disco vai sair em vinil também’. Pessoas que não tem toca disco em casa, não escutam vinil querem seus lançamentos em vinil por ser moda, ‘hype’, etc.”, escreveu em seu microblog. “Caramba tudo que eu quero evitar é que meu disco saia em vinil rsrs, pra mim perdeu a graça, tem marujo demais nesse barco... A burguesada do rock 80 redescobriu o vinil, esse é o ápice do out.”
#5 2015
Este ano, Ivete Sangalo e Criolo interpretaram sucessos de Tim Maia, tio de Ed Motta, em um show do projeto Nivea Viva. O cantor não gostou da história e descascou. “Uma empresa de cremes me procurou para fazer o projeto do Tim Maia. A grana não era compatível com meu desprazer. Para mim, a música do Tim Maia é intocável. Fica bom mesmo é com ele. É preciso honestidade e vergonha na cara para admitir isso. O cara que teria realmente cabedal para um tributo ao Tim Maia seria o Claudio Zoli, por conta do timbre de voz, pela história e envolvimento de carreira, além do compromisso com o soul/funk carioca. Mais do que sacanagem, é um desrespeito por gente que dedicou a vida inteira a isso. Vontade de vomitar, que coisa podre”.
Sobre Rodrigo Cardoso
Rodrigo Cardoso é jornalista. Escuta mais que fala. Deu certo na arte de contar histórias de gente (de Mandela a Andressa Urach) apesar da memória seletiva.
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