Disseram-me que o MMA é um esporte violento. Discordo. Discordo com todas as minhas forças.
Discordo porque penso que violência, de verdade, é outra coisa. E não é preciso assinar o canal Combate para encontra-la. O que é violento?
Violento é o preço (R$ 8,90) de um mísero suco de laranja na padaria perto de casa. E olha que o suco de lá nem é gourmet, premium, hipster, retrô, tudo isso batido com Nutella ou um néctar feito exclusivamente com laranjas orgânicas colhidas pelos padres ruivos da Escócia. Trata-se, apenas, de suco de laranja “tradiça”, ou seja: laranja comum espremida e misturada a cubos de gelo. Nada além. Nove reais? NOVE REAIS? WTF?
Violento é o que me cobraram (R$ 40,00) para que eu pudesse deixar o meu carro estacionado sobre um terreno baldio e cheio de lama, no dia em que o Queens of the Stone Age tocou em Sampa. “É o preço, senhor”, disse-me o malandro que, muito provavelmente, nem proprietário daquele terreno era. É o preço?, pensei em voz alta. Mas logo me calei. Não encontrei forças para espernear. A sensação de surra me deixou sem voz.
Violento é abrir o cardápio de um restaurante e descobrir que mesmo PF que, no ano passado, custava justos R$ 10,00, hoje está sendo vendido por assustadores R$ 25,00. Pensando bem, o PF não é mais o mesmo de antes - como eu acabei de afirmar -, pois ele foi levemente maquiado: agora leva um sobrenome “gourmet” no menu e um fio de azeite trufado. Ou raspas de limão-siciliano. Ou flor de sal. Ou qualquer outra iguaria gastronômica que eles enfiam de qualquer jeito no prato para terem uma justificativa (mesmo que imbecil) para o preço abusivo que cobram. Não só isso, meus caros! No mesmo restaurante, o refrigerante que no supermercado custa cerca de R$ 1,60 estava sendo vendido a R$ 6,50. Como assim? Isso pode, Arnaldo? Se fosse refil ou se eu pudesse trocar a latinha vazia por uma massagem tântrica, até faria algum sentido. Mas naquela Coca-Cola não havia nada de diferente da Coca-Cola do mercado. Ou havia ganância e falta de bom senso dentro dela?
Violento é descobrir que, no Brasil, um Toyota Corolla novo pode ser comprado por, no mínimo, R$ 62.000,00, enquanto o mesmo carro, nos EUA, pode ser adquirido por cerca de R$ 33.000,00. O mesmo carro? Não, eu menti um pouco: a versão inicial do Toyota gringo é mais completa do que a nossa.
Violento é ver grande parte do nosso salário suado indo direto ao estômago guloso do Impostômetro e, depois disso, não sentir sequer o cheiro do retorno esperado. Você sabia que o brasileiro médio trabalha 151 dias (cerca de cinco meses) só para pagar os impostos? Foda, né? Violento porque, apesar disso - de todo o dinheiro que entregamos sem chance de dizer “Não!” ou “Não estou satisfeito com o que vocês têm me dado em troca!”, a saúde vai mal, a educação vai mal, os transportes vão mal, a segurança vai mal, a luz e a água vão... ACABAR! É sério. Dá pra acreditar nisso? Violento, né? Mais violento ainda é ouvir gente colocando a culpa das torneiras secas em Deus. Ou no diabo. Ou em São Pedro, sei lá.
Violento é gastar parte considerável do meu salário em planos de telefonia celular e de internet que, bem diferente do que prometem, entregam-me sinais que caem mais do que aquela sua tia que, depois de tomar umas batidas bem docinhas, sempre resolve caminhar sobre as pedras esverdeadas que beiram a cachoeira.
Acha que não pode ficar mais violento? Sabe de nada, inocente.
Violentíssimo é descobrir que, no dia 16/12/2014, a Câmara dos Deputados aprovou a proposta que aumenta os salários de deputados, senadores e ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) para R$ 33.763,00. Por que isso é tão violento? Porque a grande maioria dos deputados passa o dia todo coçando o saco, ao invés de fazer algo por nós, pelo país. Mas o mais violento é saber que isso ocorre no mesmo país em que os professores ganham mal, muito mal, mal pra caralho. De acordo com dados da OCDE (Organização para a Cooperação Desenvolvimento Econômico), o salário dos professores brasileiros (que atuam no ensino fundamental do setor público) está entre os piores do mundo. E depois querem me dizer que uma canelada do Zé Aldo é violenta! É nada! Não passa de um carinho quando comparada à miséria que profissionais verdadeiramente capazes de enriquecer o povo – em todos os sentidos possíveis – recebem. Quando recebem, né?
Violentíssimo é sair do país e descobrir que existem cidades nas quais podemos caminhar tranquilamente em qualquer horário, em qualquer calçada, com qualquer quantia dentro da carteira. Cidades em que não precisamos deixar o nosso relógio preferido dentro da gaveta. Cidades nas quais o nosso coração não dispara a cada moto que se aproxima do nosso carro. Cidades em que conseguimos dormir – e até sonhar - quando aqueles que amamos saem de madrugada.
Violentíssimo é saber que o Ricardinho não foi o único - e nem o último – a morrer por causa de pura ignorância, falta de amor à vida e respeito ao próximo. Violentíssimo é saber que uma bala perdida pode, a qualquer momento, fazer com que eu deixe uma porção de textos como este inacabados, sem ponto final ou última frase de efeito. Violentíssimo é saber que a minha irmã de onze anos, graças a uma experiência traumática, morre de medo de ser atacada por marginais sempre que passa em certo ponto da Marginal. Violentíssimo é ver uma mãe chorando pelo sangue do filho derramado por gente que nem gente parece ser. Isso sim é violento, irmão. O resto é o que vemos na TV para, por ao menos alguns segundos ou socos fantásticos, esquecer o quanto nossos governantes perderam a mão.
Violentíssimo é saber que o Brasil tem cerca de 50.000 estupros por ano, sem contar o número de tentativas, que também é violento ao quadrado. E o número de mulheres que não dá queixa, por medo do estupro se tornar assassinado. Isso sim é violência, rapaz! Violência do tipo mais brutal. Violência do tipo mais intragável. Do tipo que fica parada na goela, que não dá pra engolir nem vomitar.
Não sei para vocês, meus caros, mas, para mim, um esporte no qual exímios praticantes de artes marciais lutam (muito diferente de “brigar”) dentro de um octógono não tem nada de violento. Lá existem regras rígidas, água à vontade e muito respeito. Coisas que, fora do octógono, parecem estar bem próximas da escassez, muito além do fim da picada e só um pouquinho antes da secura do poço.
Sobre Ricardo Coiro
Vive entre o soco e o sopro. Morre de medo do morno e odeia caminhar em cima do muro. Acha que sensibilidade é coisa de macho e que estupidez é atitude de frouxo. Nunca recusou um temaki ou um café.
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