Como muitos de vocês devem ter acompanhado na última semana, um funk que prometia ser um dos hits do carnaval 2018 causou uma discussão muito séria na internet após várias pessoas (sim, homens e mulheres) entenderem que trechos da música fazem apologia ao estupro. “Taca bebida, depois taca pica e abandona na rua”, diz uma parte da música “Só Surubinha de Leve”, de MC Diguinho.
A polêmica letra trouxe à tona diversas questões, não somente do que constitui apologia ao crime, mas como o tipo de conteúdo que o funk vem abordando nas últimas temporadas e o fator da seletividade, ou seja, do que a sociedade opta por atacar e o que decide deixar impune.
Vamos combinar que funk é um estilo musical bastante singular, principalmente quando se trata de controvérsias como essa. Como expressão de um povo que, muitas vezes, se diz marginalizado, as letras de geralmente abordam experiências corriqueiras do dia a dia dessas pessoas em uma sociedade cheia de problemas, reflexo da sociedade brasileira. O que precisa ser ponderado, antes de criticado, é que as letras que representam o mundo de onde todos os “mc’s” saem são fruto do problema, e não o problema em si.
A revolta com o conteúdo da música não é em vão, claro. Ninguém simplesmente decidiu escrever um textão criticando a música porque não gostou da batida ou da voz do cantor. A justificativa para tanta revolta parte do principio que, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ocorrem 12 assassinatos de mulheres e 135 estupros por dia no Brasil. Para piorar, é o país que mais mata suas mulheres no mundo. Justamente em um país onde, ironicamente, a maioria delas cria seus filhos sem a presença paterna.
Como mulher, me dói ter que ler sobre assuntos como esses quase todos os dias. Apesar do forte sentimento de empatia, eu não consigo imaginar a dor que uma mulher pode sentir ao ser violada sem o seu consentimento. Não só física, pois, para quem não sabe, a vagina é um canal que só permite uma penetração prazerosa se estiver lubrificada – coisa que não acontece se a mulher está sendo violentada ou inconsciente–, como psicológica, pois tudo o que irá restar são traumas para o resto para o resto da vida. Saber que mais da metade dos brasileiros ainda julgam suas mulheres culpadas pelo ato que sofreram, para mim, é o golpe final.
Após tanto rebuliço e denúncias (justificáveis, claro), o Spotify e o Youtube excluíram a música de seus catálogos. O pronunciamento da plataforma de streaming foi: "Conteúdos ilegais ou materiais que incitam ódio ou violência contra raça, religião, sexualidade ou coisas do tipo não são tolerados por nós. O Spotify age imediatamente para remover qualquer material do tipo que chega ao nosso conhecimento”.
Mais tarde, a declaração mais esperada foi de Diguinho, autor e cantos da música. “MC Diguinho reconhece o conflito de informações devido a toda a repercussão. O mesmo informa que em sua residência mora com a mãe, irmãs e sobrinha. Jamais iria 'denegrir' a honra e moral das mulheres. Em respeito a tudo isso, a música será lançada na versão light”, disse a assessoria do MC em uma publicação no Instagram.
Infelizmente, músicas como a de Diguinho estão todos os dias no ouvido do povo brasileiro, só não estão no Top Viral do Spotify ou outros serviços de streaming. A opinião geral de especialistas é de que a música dele – e outras parecidas–, apesar de moralmente reprovável, não é ilegal. “Temos que entender o que é previsto pela lei, que seria constranger alguém, diante da violência ou grave ameaça, a ter uma conjunção carnal. É uma letra de péssimo gosto, moralmente reprovável, mas não há crime aqui”, disse a jurista Luiza Oliver, em uma matéria publicada pelo jornal o Globo sobre o tema.
A advogada Ana Paula Braga, integrante da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP e especialista em violência doméstica e Lei Maria da Penha, discorda e diz que canção pode ser compreendida como uma apologia e incitação à violência sexual. “Tem juristas que não veem como apologia ao estupro, mas eu vejo um estimulo”, observou Braga, em entrevista ao iG . “É uma incitação ao crime de estupro principalmente ao de vulnerável. ‘Taca a bebida e depois a pica’, a mensagem é de embebedar a mulher e depois realizar a consumação do sexo com ela, e de acordo com o código penal, se a mulher está em uma condição que não consegue consentir, isso é estupro de vulnerável”, explicou.
Qualquer um aqui poderia argumentar (justificadamente) que inúmeras músicas – não só de funk – incitam uma enorme quantidade de atividades que podem ser consideradas reprimíveis, como estupro, crimes e violência. Artistas como Eminem, Metallica ou Slipknot, gigantes do mundo da música, estariam sujeitos à repreensão total, pela grande quantidade de faixas que retratam um pouco do que dissemos aí acima. Sendo assim, por que MC Diguinho é recriminado e diversos outros artistas não? Quando um compositor trata de algo em uma letra, ele está obrigatoriamente defendendo o ato? Infelizmente, é difícil imaginar uma decisão absoluta sobre isto, ainda mais no Brasil, onde acredito que nem todos tem a maturidade para tratar um assunto sério como, de fato, ele é.
Por fim, entendo que a questão que Diguinho levantou nesses dias é mais uma das polêmicas que surgem com a conscientização do tratamento da mulher da sociedade e a crescente discussão da questão de igualdade. Com a regularização de entendimentos e a desconstrução de diversas questões sociais relevantes atualmente, frequentemente nós vamos nos deparar com questões delicadas como essa. Espero, somente, que a partir de hoje esse tipo de discussão não seja mais uma daquelas que homens e mulheres dancem com uma mão no joelho e outra na consciência. E que o público sempre se lembre que, com o uso da internet, todos temos voz para incentivar, reprimir ou chamar atenção para diferentes formas de arte e de expressão.
Sobre Nathalia Marques
Curiosa e heavy user de internet, sempre amou tudo que envolve o universo do jornalismo. Nas horas vagas é fotógrafa, mãe de cachorro e leitora compulsiva.
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